A GALINHA

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Correr pela rua como se tivesse rodas nos pés era um exercício de estilo. Num salto evitava a bosta de vaca, em passinhos rápidos e frenéticos, desviava as sandálias das caganitas de ovelha. As pedras irregulares do pavimento eram uma pista de Fórmula 1 imaginária e o puto, feliz na correria, ébrio de velocidade, sorria por dentro e por fora, livre como só um puto pode ser livre. Eh, caraças, quanta felicidade!
Numa curva apertada desembocou na viela de terra batida que dava acesso às traseiras da igreja. Travões a fundo, guinada para a esquerda, estacionou o bólide e ficou ali um momento, a arfar. Um cão tinhoso, o Faquir, descansava a magreza dos ossos à sombra de uma oliveira e olhou o puto com aqueles olhos de quem está demasiado cansado para dizer bom dia mas que é perfeitamente capaz de o pensar. “Bom dia também pra ti, ó canídeo”, enrolou o puto lá por dentro, meio na cabeça, meio no coração e até um bocadinho nas pernas suadas da correria.
Foi então que, vinda sabe Deus de onde, apareceu a galinha. O puto não a reconheceu de imediato. Talvez fosse nova nas redondezas, talvez tivesse crescido de um dia para o outro. Fosse como fosse, aquela galinha não era das relações do rapaz. Tinha qualquer coisa de estranho, algo que despertou no miúdo um profundo sentimento de repulsa, como se fosse um ser maléfico, não sei bem explicar. Caminhava com a sequência de gestos habitual em todas as galinhas, esse escárnio divino da inteligência animal. A cabeça puxada para a frente num repente, a pata esquerda levantada numa hesitação, como se cada passo fosse necessariamente pensado antes de dar o seguinte, ao poisar a outra pata novo puxão, agora para trás, daquele pescoço irritante. E lá passou ela. Pata, cabeça, suspensão, cabeça, pata, cabeça, suspensão, e por aí fora, cruzando o caminho interrompido do rapaz que a olhava com uma inesperada fúria interior a subir-lhe pelo peito, a dar-lhe a volta nos ombros, descendo num formigueiro frenético até à ponta dos dedos. O Faquir, apercebendo-se da inquietação do amigo, teve um espasmo geral e ajeitou o corpo à sombra da oliveira que o sol estava a desviar discretamente. Quando o miúdo levou a mão direita ao bolso dos calções, rebuscando-lhe o fundo até tocar o cabo do canivete, o cão voltou a cabeça para o outro lado, como se preferisse ausentar-se dali sem dali sair. Pura preguiça.
O puto tinha os olhos cravados na galinha e, sem que disso se tivesse apercebido, abria agora o canivete de cabo de madeira, made in Palaçoulo, deixando a lâmina receber o calorzinho que o astro-rei oferecia ao mundo naquela tarde quente de Verão. A galinha continuava o seu trajecto no seu passo de princesa estúpida e o rapaz perseguia-a lentamente, olhos fixos no bicho, os músculos todos como se fossem um só, pronto a saltar sobre ela para, talvez, a matar à navalhada.
Foi então que, no último momento, surgida do nada, montada num raio de luz do sol mais forte do que os outros raios, surgiu uma espécie de Santa a pairar sobre a oliveira. O Faquir, aterrorizado, levantou-se de um salto e pisgou-se dali a ganir, que a idade avançada já não lhe permitia ladrar. O puto ainda tentou ignorar a aparição. Na sua mente acelerada daria primeiro um golpe fatal na galinha nojenta e irritante e depois trataria de se inteirar das intenções da Santa aparecida. Mas não pôde concluir o gesto fatal. A galinha desatou a correr, bamboleando o corpo gordo que apertava com as asas. Desapareceu enquanto o Diabo esfrega um olho deixando o predador sem capacidade de reacção capaz de dar resposta à rapidez do bicho.
Profundamente irritado, o miúdo voltou-se para encarar a santa, sobre a oliveira mas ela já lá não estava. Nem cão, nem Santa, nem galinha, apenas a oliveira banhada pela luz que descia do céu em ondas de calor intenso e abrasador. Que pôrra fora aquela? Confuso, sem ter a certeza de quase nada, guardou o canivete no bolso do costume, entrou no seu Fórmula 1 vermelho como o sangue de Cristo e partiu a toda a velocidade em direcção à porta da igreja. Tinha umas contas a ajustar com uns quantos fantasmas e espíritos que por lá moravam. Alguns ainda moram, segundo ouvi dizer.

Postado por Rui Silvares

6 comentários:

Jorge Pinheiro disse...

Já tinha feito um comentário que sumiu! Em pequeno eu imaginava-me nestas aventuras... mas voava. Enfim, cada um com a sua. Milagres é que está difícil!
Bela história. Há mais?

Maria Augusta disse...

A "santa" devia ser o "anjo da guarda" da galinha...
A descrição dos movimentos da galinha estão geniais, assim como todo o resto. Muito bom!
Abraços.

sonia a. mascaro disse...

Muito bom o conto, Rui Silvares. É difícil ver uma galinha como protagonista... torci pela salvação dela.
Abraços!

Silvares disse...

Jorge, haverá mais, sim. Este foi escrito de um fôlego para participar no Blogue. Tem algumas falhas de pontuação e um ou outro pormenor que merecia correcção.

Maria Augusta, as santas andam por aí e aparecem quando é preciso. Obrigado pelas palavras de incentivo.

Sonia, já viu o filme "A Fuga das Galinhas"? A protagonista é demais!
:-)

sonia a. mascaro disse...

Já vi sim e gostei muito!

Quando eu era criança, morava numa casa com um quintal muito pequeno e não podíamos ter um cachorrinho. Tinhamos então pintinhos, que nos seguiam (a mim e a minha irmã) como se fossem cachorrinhos. Mas os pintinhos cresciam... e tinhamos que levá-los para o sítio. Mas era proibido comer aqueles franguinhos, que viravam galos. E morriam de velhos.
Abraços.

Silvares disse...

Melhor que as personagens do filme que eram destinadas ao recheio de belas empadas... :-)

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