O PONTÃO

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Calcanhares pesados de mulher obesa. Ao lado, chiando um carinho de bebé. Um homem ossudo com ligeira tendência para joanetes. O arrastar corrosivo das alpercatas de um bando de adolescentes excitados com a perspectiva de um escaldão. Homens carregados de geladeiras, cadeiras de praia e guarda-sóis.
No Verão não tenho descanso. Pés descalços, chinelas, sapatilhas, ténis. Passos apressados. Passos descontraídos. Pés de chumbo. Pés de fada. Pés agressivos. Pés delicados. Botas de borracha dos pescadores. Sapatos grossos da guarda costeira... Todos os pés do mundo passam por mim.
Aprendi a conhecer as crianças que correm excitadas em direcção ao mar. Reconheço os homens barrigudos que anseiam por uma sesta depois de um almoço bem regado. Invejo o beijo dos namorados que se entrelaçam nas minhas tábuas escaldantes. Irritam-me as mulheres com os sapatos de saltos perfurantes. Sofro com os estrangeiros, sempre à beira da insolação.
Nos primeiros anos ainda tentava perceber a nacionalidade. Se eram pretos ou brancos. Se eram casados ou solteiros. Se vinham todos os dias ou eram visitantes esporádicos. No fundo até gostava das pessoas. Eram a minha única companhia!
Com o passar do tempo perdi a curiosidade. As pessoas vêm, as pessoas partem… Cada vez me interessam menos. Para elas eu não sou nada. Uma simples passagem que está ali para as servir. Rígido, imóvel, estático. Elas passam por mim indiferentes à minha dor. Felizes depois de um dia de praia. Vão jantar conquilhas. Devorar amêijoas. Vão dançar. Divertir-se. Sonhar. Amar! Eu fico sozinho na minha muda solidão. Na minha prisão agrilhoada.

A princípio ainda acalentava ilusões. Pensava que com esforço havia de conseguir mexer as minhas sapatas profundamente enterradas na areia. A minha madeira jovem alcançaria a liberdade. Eu seria um barco, um veleiro, um iate, uma simples jangada. Navegaria ufano sobre as ondas. Venceria tempestades. Provaria o sal húmido nas noites de neblina. Ouviria conversas íntimas no meu convés. Atracaria em portos exóticos, nas distantes enseadas do Mediterrâneo e do Índico. Eu seria a inveja dos sete mares!
Os anos passaram. Agora estou velho. Ressequido. Os pregos enferrujados. As madeiras carcomidas. Sou o pontão da praia da Fábrica. Sirvo apenas para proteger as dunas. Todos os dias vejo a mesma paisagem. A mesma areia branca. A mesma ria parada com barcos coloridos. O mesmo mar azul na espuma da rebentação. As muralhas de Cacela a Velha. A alvura da torre da igreja. Os maçaricos que passam lépidos em bandos rasteiros. A faina de solitários lavradores de amêijoa cavando o lodo escuro. As arribas ocres enfeitiçadas por alfarrobeiras milenares. As gaivotas, insolentes, pairando no vento levante.
Mesmo assim não perdi a esperança. Esforço-me. Todos os dias tento erguer-me. As madeiras rangem. Os pregos gemem. Por momentos parece que me vou libertar. Ilusão. A areia prende-me mais que nunca. Estou aprisionado, definitivamente acorrentado. A minha pena é perpétua!
No Inverno ainda é mais solitário. O vento grita. A chuva apodrece-me. O mar ruge. A neblina cega-me. A ria perde o seu bulício. Ninguém me pisa. Ninguém precisa de mim. Um dia serei substituído por tábuas novas. Novos troncos. Novas pranchas envernizadas e reluzentes. Pregos brilhando de prateado. Nunca terei saído daquele lugar. Nunca terei sentido aquele mar que me olha todos os dias sem nunca me ter beijado.

Naquele Inverno o sudoeste veio forte. Céu plúmbeo de breu cinzento. O vento uivava de raiva. O mar batia com violência. A água revolta alastrava pela areia.
Naquele dia senti o orvalho salgado da espuma. Via a água cada vez mais perto. Comecei a ter esperança de molhar os pés. Fiz um esforço derradeiro para me soerguer. Línguas de água lambiam-me as escadas. As ondas salpicavam as madeiras. Força, mais um esforço. As vagas cada vez mais fortes. De repente fui invadido por enorme vagalhão… e mais outro… e mais outro, numa sucessão imparável, como se todo o oceano me quisesse engolir.
Senti o prazer do sal temperando os meus poros. A espuma borbulhando sensualmente na minha pele. Senti arrepios da água a escorregar pelas minhas pranchas. Entreguei-me às ondas que me penetravam as entranhas.

As vagas em turbilhão arrasavam a praia devastada. O mar sedento de vingança rompe dunas, quebra barreiras, destrói diques, na ânsia de se juntar à ria.
O pontão, no seu devaneio, sente que vai finalmente libertar-se. Não vê que as ondas não são já vagas, mas todos os oceanos do mundo que se juntaram para o esmagar.
As tábuas rangem de dor. As escadas começam a desconjuntar-se. O corrimão despedaça-se em mil estilhaços. Em poucos minutos o garboso pontão da Fábrica está transformado num amontoado disforme de madeira estraçalhada, vagueando na turbulência desencontrada das correntes. Jamais seria um navio!

Naquela noite o mar amansou e vomitou para terra os restos indesejados daquele repasto tenebroso.
As tábuas desfeitas do pontão amontoavam-se na areia. No início da Primavera estariam secas. Em breve serviriam para aconchegar os pescadores nas fogueiras nocturnas à espera dos sargos!

por JORGE FERREIRA PINHEIRO

5 comentários:

Anônimo disse...

Jorge,

das toalhas, guardas sol e pontão sua mestria em lidar com as palavras, sua criatividade e sensibilidade, nos dão a cada conto, uma demonstração inequivoca de sua vocação comprovada!Um brilhante escritor!

Obrigado por nos honrar com seus textos este blog.

Forte abraço

Silvares disse...

Subscrevo o comentário do Eduardo. Este talvez seja o primeiro a denotar alguma treva no horizonte, uma sombra mais persistente no areal. Muito bem construído.

sonia a. mascaro disse...

Concordo plenamente com o Eduardo e com o Silvares. Um conto onde as coisas "inanimadas" ganham vida e expressam seus sentimentos, desejos, frustrações... Muito original e bem escrito!
Abraços, Jorge!

Anônimo disse...

Essas suas férias na praia, certamente estão te inspirando para novos contos! OBA!

Jorge Pinheiro disse...

Novamente os meus agradecimentos ao estimado público. Obrigado mesmo.

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