O ESPELHO

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Naquela casa havia um espelho. E uma janela. Nessa casa vivia também uma mulher velha com o seu gato pardo de tantos anos que tinha. A mulher sentava-se todos os dias à janela, na mesma cadeira de baloiço de sempre, afagando o gato quase-adormecido ao seu colo. Afagava-o com os seus dedos retorcidos e engelhados, marcando com cada afago uma passagem do tempo. O relógio que se reflectia no espelho, há muito que parara. Ela deixara de precisar de sentir a passagem do tempo. Bastavam-lhe as horas que se adivinhavam pelo correr do mundo que via da sua janela. A luz que molhava o soalho anunciava-lhe a manhã. E naquele dia era manhã. Daquelas tão límpidas e rasgadas de luz que os seus olhos pequeninos e baços podiam ver o mundo até ao fim da rua, que terminava numa esquina. Era uma daquelas manhãs, cujo brilho gritava no espelho que ficava por detrás da sua cadeira. E ela, a mulher velha, ignorava a luz estridente que ecoava na moldura dourada. Há muito que o deixara de olhar. Nele via uma mulher que não conhecia. Nele via o seu passado, as suas histórias que quisera que se perdessem na memória. Não precisava que ele, o espelho, a recordasse das sombras daquilo que suspirara ser um dia. Que lhe mostrasse que por detrás dela havia apenas uma sala vazia, sem cor, varrida de afectos. A velha, que se vira ao espelho, fora um dia uma mulher que tinha medo de envelhecer. Que tinha medo de viver. Por isso preferia o vidro da janela. Do outro lado, havia um presente que não era o dela. Havia o som de quem não sabe o que é solidão. Havia a cor de quem ia para além da esquina. Fora sempre assim. O mundo fora de si, parecia-lhe sempre mais belo.E o unico reflexo que tinha de si, era aquela sombra ténue, desenhada a giz-tempo, que quase podia ter o rosto que ela quisese. Sem idade, nem passado. Por isso desprezava aquele espelho de moldura dourada. E ficava, de costas voltadas, olhando a janela de madeira branca descarnada, marcando o tempo no dorso do gato sem nome nem idade. Olhando as copas verdes dos Lodãos Bastardos no Verão, que se casavam em ouro com o Outono, choravam despidos no Inverno, até que fosse de novo a estação dos cheiros a flores e sorrisos. Olhando. Olhando o reflexo do tempo que não era, mas quisera seu, de costas voltadas para a imagem que o tempo lhe dera.
Cristina Nobre Soares

2 comentários:

Cartografia n'alma disse...

Que lindo texto!!!Que lindas as imagens que dele tiramos!!!O espelho, o carrasco cruel que nos tortura com as visões da inevitávelpassagem do tempo. Nem sempre a aceitamos. Lindo! Lindo! Lindo!!! Parabéns! Voltarei sempre!
beijos!!!

sonia a. mascaro disse...

Que beleza de texto, Cristina! Fiquei comovida... emocionada...
Parabéns!

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