O GUARDA - SOL

“Mariana, onde está o guarda-sol?”. Todos os anos era a mesma coisa. Por pouco não se esqueciam de mim. À última hora lá me iam buscar à arrecadação onde passara mais um Inverno húmido e bolorento. Eu que fora feito para o ar livre só tinha direito àquelas breves três semanas de férias!
O carro era pequeno. Eu, como de costume, viajava no fundo do porta-bagagens esmagado por malas, geleiras e pranchas. Viajava abafado, na mais completa escuridão.
Ouvira dizer que, este ano, íamos para a zona de Tavira. Mas ninguém se dignara informar-me. E, no entanto, eu era imprescindível.
Como eu gostava de ter sido guarda-chuva. Precisariam de mim o ano inteiro. Viajaria num lugar nobre do carro sempre a contemplar as vistas. Nos dias cinzentos iria passear com o meu dono que me acariciaria ternamente o cabo. Poderia roçar-me em guarda-chuvas femininos, no aconchego de restaurantes e cafés. E à noite ficaria cá fora a contemplar o luar enquanto o meu pano secava.
A viagem correu como era de prever. Sairam com duas horas de atraso. Já na auto-estrada deram pela falta da chave da casa de férias. O pai berrou com a mãe até esta romper em pranto. Os três miúdos gritaram o tempo todo. Pararam em Alcácer para fazer chi-chi. Em Grândola para fazer có-có. Almoço em Aljustrel. O mais novo vomitou em Almôdovar. Às cinco da tarde Pedras d’el Rei era ainda uma miragem.
A casa era acanhada e com pouca arrumação. Eu fiquei num canto entre uma irritante vassoura amarela e uma esfregona húmida que não parou de espirrar a noite toda.
Agora vou todos dias à praia. Sou importante. Agora ninguém se esquece de mim. Sou transportado com desvelo. Aberto com carinho.
Todos os dias o pai enterra-me com energia na areia e abre ao Sol os meus gomos coloridos. Eu sou um guarda-sol clássico. Todo em metal. Pesado e resistente. Copa em pano amarelo, vermelho, verde e azul. Sou um guarda-sol garboso!
Por baixo de mim é o reino da sombra. Todos me disputam. A geleira com sandes de atum. O termos da água. Os cremes de protecção solar. A máquina fotográfica. O indispensável telemóvel. À tarde os miúdos dormem a sesta. A mãe passa pelas brasas e o pai lê entusiasticamente o último romance de Garcia Marquez.
Ao meu lado dezenas de guarda-sóis povoam de cores a extensão do areal.
Alguns de nós agrupam-se em pequenos oásis de frescura. Por debaixo, conversas sussurradas de namorados. Carícias ousadas de amantes. Tudo ouvimos, tudo calamos.
Adoro o Sol ardente que me queima as cores. A areia tórrida em que me espetam. O mar azul que contemplo à distância. Ao longe vejo os cumes do Caldeirão e a ria derramada pelo sapal em braços sinuosos de maré-cheia. Adoro a vozearia excitada dos humanos e o cheiro intenso a cremes de protecção solar. Sinto que existo. Sinto-me bem!
Não gosto de voltar a casa. Não gosto que me fechem as varetas. Detesto que me tirem da areia. Depois, em casa, arrumam-me com desprezo no meu canto escuro. Detesto!
À noite tenho insónias, entalado entre a esfregona que continua constipada e a vassoura que não pára de resmungar. Durmo vigilante, ansiando pela manhã.
No final da segunda semana comecei a ficar inquieto. Mais sete dias de liberdade e voltaria à cave bafienta de Lisboa. Se tivesse pernas fugia. Escondia-me. Refugiava-me nas dunas. Passaria o resto do ano correndo livre no areal. Talvez ousasse tomar banho. Seria selvagem. Viveria para sempre ao Sol!
Ultimamente tenho feito amizade com um guarda-sol verde-escuro, de ar sóbrio e plastificado. É um jovem guarda-sol de origem alemã com o dom da oratória. Todos os dias arenga na praia um enorme ressaibiamento, apelando à revolta. É um agitador. À sua volta conquistou já uma vasta corte de indefectíveis seguidores.
“A humanidade é desprezível. Uma corja de egocêntricos. Só pensam neles. Nos seus prazeres. Nós somos escravos dos seus desejos. Prisioneiros das suas vontades” - pregava ele.
Ficávamos horas a discutir as formas de luta mais adequadas. Uns aventavam greve de zelo, apelando a que ninguém se deixasse fechar. Outros, pelo contrário, achavam que não nos devíamos deixar abrir. Alguns defendiam que não nos devíamos deixar espetar. Outros, ainda, mais radicais, preferiam que o vento lhes rompesse o pano para não mais servirem aquela raça degradante.
Agora tudo me irritava. As cansativas expedições à praia. A quantidade absurda de tralha que aquela gente levava. O constante retinir do telemóvel. A mãe a besuntar-se permanentemente com cremes de cheiro rançoso. O pai barrigudo tirando fotografias desfocadas aos insuportáveis filhos. Os estúpidos miúdos com as mãos bezuntadas de pasta de atum discutindo a posse da garrafa de água... Tudo, mas mesmo tudo, me passou a irritar!
Durante a noite levantou-se um vento forte de sudoeste. De manhã o vento não tinha abrandado. Era o último dia de férias. Teimaram em ir à praia. Eu fui contrariado. Detesto vento forte. Sou guarda-sol. Detesto ficar tombado na areia com a haste mal enterrada a servir de pára-vento. Odeio os grãos de areia que me bombardeam o pano como chumbos de caçadeira.
O vento aumentava. Cada vez mais violento. Eles descontraídos jogava à bola e mergulhavam inconscientes.
Comecei a sentir-me soerguer. O vento enfunava-me o pano. A pouco e pouco a haste soltava-se da areia. Não tinha meio de me segurar. Ainda gritei. Ninguém ouviu!
De repente, uma rabanada mais forte soltou-me definitivamente. Comecei às cambalhotas pela praia fora, cada vez mais depressa, rodopiando sobre mim próprio num torvelinho imparável. Agora eles perseguiam-me desesperados.
Ao longe, um homem deitado ao Sol parecia adormecido. Eu ia cavalgando metros sobre metros em saltos avassaladores. O homem cada vez mais perto. Eu, cada vez mais veloz. Eles cada vez mais longe.
Dentro de mim ecoava a voz do guarda-sol alemão: “... Egocêntricos... Raça degradante... Revoltem-se”. O vento assobiava ferozmente. O homem cada vez mais perto...
Confesso que à última hora ainda me podia ter desviado. Mas não quis! Com um ruído surdo espetei-o entre as costelas, bem a meio do peito. O homem não chegou a acordar.
Para mim acabaram os Verões. Agora cumpro prisão perpétua no fundo da arrecadação. As traças comem-me o pano. A ferrugem corrói-me as entranhas.
Eles passaram a alugar um toldo à época e nunca mais foram a Pedras d’el Rei.


Postado por JORGE FERREIRA PINHEIRO


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7 comentários:

Anônimo disse...

Jorge,

MAGNÍFICO TEXTO.
Realmente escrever, e fazer música são dons! E tu tens!

Forte abraço

Anônimo disse...

Soberbo!

sonia a. mascaro disse...

Jorge,
Gostei bastante! Muito bem escrito e original! Acompanhei a saga do guarda-sol, a descrição minuciosa das férias da família e o final... absolutamente inesperado! PARABÉNS!!!
Abraços!

João Menéres disse...

Jorge,
A leitura do seu texto sobre o guarda-sol deixou-me, uma vez mais, surpreendido com as coisas maravilhosas que o Varaldasideias me tem proporcionado.
Ignoro se é habitual da sua parte escrever. Vai desculpar a minha ignorância (não esqueça que sou novato por aqui).
A descrição é óptima, muito original só o final não foi surpresa para mim: a minha mulher também foi vítima da raiva de outro guarda-sol na Praia da Rocha. Os donos do dito ficaram muito embaraçados e preocupados com o acidente. Ofereceram-se para a levar à Farmácia ou ao Hospital de Barlavento. Não foi preciso. Resta uma pequena cicatriz, sem grande significado.
Uma coisa posso dizer (coincidente com a sua história): Os donos simpáticos desse guarda-sol vingativo nunca mais voltaram à Praia da Rocha!

Felicito-o pela história mas, pergunto, não publica?

Jorge Pinheiro disse...

Obrigado a todos pela leitura. É bom ser lido. Este conto faz parte de uma série que intitulei "Contos da Ria" ficcionados a partir das vivências e do local onde durante muitos anos passei férias e que para mim são absolutamente míticos. Quem não conhece a Ria Formosa no Algarve perde uma das zonas mais espectaculares de dunas selvagens, praias lindas de morrer e água quente. A zona é perto de Tavira. Fui para lá desde os meus 20 anos. Tem de se passar de barco ou, noutros sítios, passar uma ponte levadiça e apanhar um comboizinho para a praia. Vão ver isso ao longo das outras histórias, se quiserem fazer o favor de me acompanhar. No meu blogue, em Novembro de 2007 publiquei uma série de fotos que vos podem dar uma ideia da paisagem única de que estou a falar. Talvez publique um pequeno resumo fotográfico agora que estaria lá, não fossem circunstâncias da minha vida pessoal não o recomendarem. Os "Contos" estão agora a ser ilustrados por um jovem pintor meu amigo... Publicar? A ideia é essa, mas as editoras por cá estão meias caretas. Não está fácil!
Respondendo ao João. Não me considero um escritor, assim como não me considero um músico, um escultor ou um fotógrafo. Faço apenas um pouco de tudo, o melhor que consigo. Tenho um livro publicado, em 2007, cuja edição, limitada, já esgotou e que se chama "Turista Ocidental". No meu blogue, às segundas, tb. estou a publicar directamente on-line "Filhos do Povo do Sul - Histórias de Uma Banda Rock dos Anos 70" (a banda que agora está a gravar um disco e vai voltar a dar espectáculos, cujo nome é Ephedra" e que tocava e toca o chamado "rock-progressivo". Ao mesmo tempo estou a ultimar a foto-biografia de um amigo meu (fotógrafo e professor do IADE)que teve a insatez de morrer em Junho de 2007.
Quanto à sua mulher, caro João, ainda bem que não passou de uma cicatriz. Um abraço para si e para ela.

Maria Augusta disse...

Muito bom mesmo este texto. As vezes também já fiquei pensando nestes objetos que em momentos "de aperto" são indispensáveis, mas que em tempo "normal" atrapalham, ninguém quer saber deles. Como os guarda-chuvas, as bengalas e acho que isto deve acontecer mesmo com pessoas.
Abraços.

Anônimo disse...

Belo texto !
Como se vê, as praias mudam de nomes, de paísesm, mas seus frequentadores são todos iguais. como dizemos por aqui, uns " farofeiros ".

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conte o seu : qcucaup@gmail.com