A TOALHA DE PRAIA


Faça como o JORGE PINHEIRO
Conte o seu.
Sou essencial. Sem mim não há Verão. Dou cor à praia. Dou guarida aos encharcados. Agasalho do vento. Sou cama para bronzear. Leito para descansar.
Passo o Inverno expectante. Tenho uma gaveta só para mim. Não me misturo com banais toalhas de banho. Aguardo com paciência na certeza de ser indispensável.
Sou uma toalha de praia. Uma toalha fina. Frequento as melhores piscinas, as praias mais exóticas. Viajo confortável para as Bahamas, Maldivas, Mónaco. Já estive No Rio de Janeiro, em Itapuã, em Cuba. Sou uma toalha viajada!
Quando se esquecem de mim voltam atrás com preocupação e já por duas vezes percorreram quilómetros só para me recuperar. Tratam-me com todo o desvelo.
Há toalhas pirosas às flores. Toalhas de feira com paisagens e palmeiras. Toalhas “souvenir” com vistas de postal ilustrado. Depois há as toalhas decentes. Toalhas às riscas discretas ou de uma só cor. Eu sou uma toalha clássica em azul-escuro.
Este ano vamos a banhos para a Ria Formosa, no Algarve. Alugaram uma casa na serra do Caldeirão com vista deslumbrante para o mar lá ao longe e para a serra, onde o Sol se põe, refulgente, entre estevas e alfarrobeiras.
A minha dona é uma miúda linda. Tenho crescido com ela. Agora, nos seus dezassete anos, está uma mulher sensual e apetecível.
Quando se deita de costas em cima de mim sinto-lhe as nádegas firmes e as coxas voluptuosas. Quando se vira, os seios redondos e túrgidos moldam-se no meu tecido turco deixando marcas indeléveis de puberdade ansiosa.
À tarde deitamo-nos na areia em grandes círculos. As miúdas falam de namorados distantes e dizem mal de amigas ausentes, enquanto mastigam com deleite bolas de Berlim e gomas multicores vindas de Espanha.
Nós, as toalhas, ficamos ali preguiçosas escutando as conversas. Vamos tocando levemente umas nas outras, num ritual diário de sensualidade contida.
Ao fim da primeira semana a pele delas está castanha. Textura de pêssego, sabor a sal. Mergulham excitadas no mar cálido que as envolve com delícia.
Nós aguardamos que voltem, ansiosas por provar um pouco daquele sal que se lhes cola ao corpo em cristais transparentes de oceano.
Umas vezes sou transportada aos ombros e enrolada àquele pescoço perfeito. Outras vezes envolvo-lhe as ancas, sentindo o roçar das coxas uma na outra. Adoro aquele contacto quente com a pele morena e ardente. Adoro o odor perfumado dos cabelos salgados. Adoro as mãos tisnadas que me acariciam ao de leve.
À medida que o tempo passa vou ficando cada vez mais dura. Não sou já aquele tecido inerte dos primeiros dias. Agora o sal dá-me consistência. Desenvolve-me os músculos atrofiados que trouxera de Lisboa. Já não sou um mero pano amorfo e definhado. A pouco e pouco vou ficando um corpo rígido. Quase me ponho de pé!
Detesto água doce. Não quero ser lavada. Quero manter-me forte. Cada vez mais forte. A minha secreta ambição é andar. Não quero depender desses imprevisíveis humanos para vir à praia, para adorar o Sol, para provar o mar.
A última semana de férias é sempre dramática. Em breve deixarei o Sol, a areia, o sal. Em breve voltarei para a minha gaveta escura, inerte, morta. Todos os anos era a mesma coisa.
Este ano, porém, foi muito pior. Um dia a mãe disse: “Margarida essa toalha está um nojo. Há quantos anos a comprámos?! Temos de comprar uma nova urgentemente.”
Fiquei completamente em pânico. Nunca mais veria o Sol. Deixaria de ter serventia. Estava perdida!
Naquele dia as miúdas foram dar o habitual passeio até ao fim da ilha. Sabia que iam demorar mais de uma hora. Os adultos estavam lá mais para baixo, refugiados na sombra do guarda-sol.
Era agora ou nunca. Comecei a mover-me lentamente, muito lentamente. Os meus músculos de sal gemiam de dor. Devagar, discretamente, arrastei-me em direcção ao mar. Ninguém estava a reparar em mim. Continuei com enorme esforço. Centímetro a centímetro. Metro a metro.
Tinha a certeza de conseguir nadar. De poder flutuar. Fugir. Fugir para sempre. Tinha a certeza de que o mar me levaria para paragens distantes. Areais desertos onde passaria o ano inteiro ao Sol, correndo pela praia, descansando na areia, secando ao vento, cheirando o sal da maresia. Era uma certeza que me dava força. Continuei a deslizar. Agora sentia já a areia húmida e a espuma da maré.
Um esforço derradeiro e consigo levantar-me. Pela primeira vez na minha vida estava de pé. Vi a praia em toda da sua extensão. O horizonte sem fim e o mar logo ali. Mergulho sem hesitação. Estava salva!
A água está cálida e macia. A maré vazante puxa-me para o largo. Ninguém me viu. Estava entregue a mim própria. Dou duas braçadas fortes. Três. Quatro… O que isto?! A força começa a faltar-me. Não consigo ter controle no meu corpo. Os músculos cedem. Dissolvem-se na água do mar. Entrei em completo desespero. Quanto mais esbracejava mais me afundava. Tentei gritar. Ninguém me ouvia. As ondas puxam-me para fora, cada vez mais para fora. O peso da água leva-me para baixo. Era novamente um simples pano. Um pano à deriva. Ia-me afogar!
Sempre tinha pensado que o sal do mar me iria fortalecer ainda mais os músculos. Nunca pensara que os iria dissolver.
Estou perdida. Completamente perdida. Cada vez descia mais. A água era agora fria e escura. Deixei de ver o Sol. Já não me debatia. Estava condenada. A minha ambição tinha-me perdido.
Lá em cima um ruído agudo e metálico pairava sobre mim. O hélice de um barco rodava negligente sugando tudo à sua volta. Não podia fazer nada. Acabei estraçalhada, dilacerada em mil pedaços.
Já não existo. Desfiz-me. Perdi-me no oceano. Nunca mais vi o Sol. Nunca mais vi a praia. Os mil pedaços que eu fora rapidamente apodrecerão. Só ficará o sabor do sal, esse sal que me atraiçoara!
Postado por JORGE PINHEIRO

6 comentários:

Maria Augusta disse...

A praia tem sido inspiradora para o Jorge, que nos brinda com textos geniais. Esta toalha, coitada, antevendo seu fim resolveu escapar dele...mas teve uma vida agradável, pelo menos no verão.
Abraços e um bom domingo para vocês.

Anônimo disse...

O Jorge consegue fazer de meio limão, uma farta limonada!

Parabéns!

sonia a. mascaro disse...

Que lindo conto, Jorge! Emocionante e também com final inesperado e pungente! Você realmente tem muito talento!
Abraços.

Jorge Pinheiro disse...

Bondade vossa. De qq forma vou mandar a sequência a ver se mantenho o meu público!

João Menéres disse...

Mais um Conto das Areias (não são Capitães).
É o 2º que leio seu com interesse redobrado. Mais novas felicitações, portanto. É autor de enorme talento e É PRECISO que alguém o edite!
Embora os blogues em que é postado tenham um público incalculável, não é justo ser desconhecido por quem os não visita com cuidado e nem sequer sabe que, em Lisboa, na Linha, mora um contista(já que se diz não escritor) que tem muito génio(para não repetir TALENTO) e que será um furo para quem estiver interessado em ter um best seller no seu catálogo.
E agora que há uns super editores e novas editoras que querem "artigo novo", acho que o Jorge, se se der ao trabalho de levar uns tantos NÃO,ràpidamente deparará com O EDITOR, com o seu editor!
Se conhecer dois ou três críticos literários (que façam a notícia), talvez eu possa dar uma ajuda no meio editorial.
Estamos fartos de literatura côr de...quê? ...
Pense nisso, meu caro Amigo. É uma honra "descobrir" um contista como o Jorge!
Força, não hesite, NOSSO ARTISTA(porque o é em várias disciplinas, como muito bem destacou o Eduardo).
Um abraço com a minha muita admiração.

Jorge Pinheiro disse...

Estou a ficar corado...

.

.
conte o seu : qcucaup@gmail.com