A BOLA DE BERLIM


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Contrariamente a muitas colegas ela ia viajar. Outras não passariam da montra da Pastelaria Felismina expostas à cobiça dos clientes, na certeza de serem devoradas sem nada verem do mundo. Ela ia à praia!
Com ar sorridente e muito redonda, a bola de Berlim deixou-se aconchegar no fundo da caixa. Era uma bola simples. Sem creme. A sua natureza rotunda garantia-lhe boa disposição. À sua volta havia também pastéis de amêndoa que olhavam com inveja aquelas formas voluptuosas e sensuais. Dentro da caixa tudo era doce. Um ligeiro cheiro a fritos fazia-a sentir-se em casa. A escuridão transmitia-lhe frescura e serenidade.
A bola de Berlim estava preparada para enfrentar a precaridade da vida. Tudo se decidiria nas próximas dez horas. Ou seria devorada pela luxúria de uma boca gulosa ou seria inapelavelmente deitada ao lixo. Sabia ser assim e, no entanto, ia receosa.
Amalia Simionca pegou nas duas caixas de bolos e entrou no barco. Lá atrás, Alexandre, um mocetão da ria, acelerou os 75 cavalos do motor em direcção à praia. Estava maré-cheia na manhã límpida de sudoeste moderado. O “Espadarte” deslizou até à ilha. Eram nove horas.
Amália lançou as pernas esbeltas e tisnadas para fora do barco. Um penacho loiro e atrevido saia por trás do boné branco que lhe protegia os olhos azuis. Calções curtos deixavam entrever uma nesga de perna branca no resvalar da amurada. Corpo suave e musculado. Sorriso aberto que olha de frente sem receio de incomodar.
Há três anos viera da Roménia para ocidente. De emprego em emprego buscava a legalização. Se encontrasse o homem certo talvez casasse.
Pelas dez horas eram já muitos os banhistas que se espalhavam ao longo da praia agrupados à volta de guarda-sois multicolores. Amália percorria quilómetros, esperando que a chamassem.
Os bolos gostavam de Amália. O modo calmo e prazenteiro da mulher inspirava-lhes confiança para enfrentar o seu único dia de vida.
Lá dentro da caixa, no seu cantinho confortável, a bola de Berlim adorara a ondulação suave ao passar a Ria. Interrogara-se sobre o chapinhar dos pés no sapal enlameado. Sentira a brisa salgada ao atravessar as dunas. Ouvia agora a vozearia excitada das crianças correndo no areal. Surpreendia-se com o permanente rugir do mar.
De vez em quando, a tampa da caixa abria-se. Ela via a cara sorridente de Amália e, por cima, um céu muito azul reverberando de intensidade. A seu lado uma colega lançava um grito aflito e desaparecia puxada por duas tenazes. A tampa fechava-se e a caixa ficava mais vazia.
Perto do meio-dia o calor era insuportável. As bolas com creme que ainda sobreviviam derretiam pegajosamente e os bolos de amêndoa cheiravam ligeiramente a ranço.
À uma da tarde Amália voltou a terra para um almoço rápido e reabastecimento das caixas.
A bola de Berlim regressou à praia com novas companheiras, contente por poder desfrutar de mais tempo para sentir o mundo. Mas ia ainda mais apreensiva. Tinha medo de ser comida e horror de ser deixada a apodrecer.
A tampa abria e fechava. A luz entrava e saía. O sorriso de Amália rapidamente desaparecia. E ninguém a queria! A bola de Berlim pôs-se a pensar se não seria da falta de creme!
Eram quase seis da tarde e nada. Amália fazia penosamente a última ronda pelos guarda-sóis.
De repente um sinal. Um grupo grande de veraneantes chamava ao longe. Amália correu esperançada em libertar o resto da carga.
Era um grupo grande e com grande apetite. A tampa abria e fechava. Abria e fechava. No fim só restava ela, encurralada num canto escuro da caixa. E a tampa fechou-se definitivamente deixando-a sozinha. Sentiu a caixa muito grande, muito desconfortável. Sentiu-se abandonada, rejeitada.
Subitamente, lá do fundo, vindo mar, uma miúda em correria gritou: “Mãe, mãe, quero uma sem creme”.
A bola de Berlim sabia que era a sua vez. Sentiu-se excitada. Um misto de receio e de exaltação. Arredondou-se o melhor que pode. A pinça agarrou-a com firmeza. A bola tremeu sustendo um ligeiro pânico. O sorriso indulgente de Amália deu-lhe coragem. Rapidamente foi introduzida num saco transparente e cuidadosamente depositada na areia.
A miúda limpava-se da água do mar com uma toalha azul escura.
Num breve minuto a bola de Berlim viu o mundo. Viu o mar esmeralda na rebentação branca. Viu conchas espalhadas ao acaso na areia refulgente. Viu o Sol brilhando redondo lá no alto. Viu outras bolas correndo à solta na praia fustigadas por rapazes que lhes davam pontapés. Viu gente, muita gente. Gente que falava. Gente que parecia dormir. Gente que andava sem rumo. Gente que nadava. Gente magra. Gente gorda... Muita gente!
A miúda chamava-se Rita. Dirigiu-se gulosa à bola de Berlim que estremeceu contendo um grito de pavor. À medida que a miúda se aproximava as mãos pareciam cada vez maiores. Num assalto final agarrou na bola que se encolheu num reflexo desesperado.
Antes de ser dilacerada, a última imagem que teve foi uma boca enorme, escancarada, com uns dentes brancos muito afiados abrindo-se horrivelmente sobre si.
Ao longe, Amália segue em direcção ao barco feliz por ter acabado mais um dia de trabalho. Alexandre olha de soslaio as pernas tisnadas. O barco arranca suavemente no calor do pôr-do-sol.

Postado por Jorge Pinheiro

20 comentários:

Anônimo disse...

Jorge,

mais uma vez dá um banho de literatura e criatividade.
Parabéns!
Gostei muito.

roserouge disse...

Agora fizeste-me lembrar a minha filha que, um dia quando tinha 5 anos, se pôs a chorar ao jantar porque estava cheia de pena do ovo cozido que ia ser comido! Coitadinho do ovo cozido, dizia ela...Incrível como tu consegues personificar e dar vida própria a guarda-sóis, toalhas de praia e bolas de berlim! Até fico cheia de peninha dos objectos!
Já leste o "Timbuktu" do Paul Auster? A vida dum cão, contada pelo próprio. Acho que ias gostar. Fantástico, este conto. Bj.

Anônimo disse...

Rose,

meu escritor vivo, contemporâneo, americano, é o Paul Auster. Li tudo dele, e este a que se refere, é muito bom. Lembra, mesmo!

roserouge disse...

Concordo, Eduardo! Também tenho tudo, ou quase do PA. "O Livro das Ilusões" esgotou-me, foi um soco no estômago, um vício. Já reparei que também gostas de Dennis Lehane. Leste o "Shutter Island"? Brutal!

Jorge Pinheiro disse...

Já somos três. Claro que li "Timbuktu"!

Anônimo disse...

Rose,
Shutter Island, li a tradução, que recebeu o título de PACIENTE 67, e mais:
Darkness, take my band
Mystic River
Gone, baby, gone
A drink before the war
Sacreal
Prayes for rain
Coronado

Gosto muito do Dennis, como pode ver!

Bjs

ESPERO pelo seu blog, com anciedade!

Silvares disse...

Paul Auster à parte tenho a dizer que estou a gostar bastante da escrita do Jorge Pinheiro (não o pintor, o outro... este!).
Interessante, além da narrativa centrada na bola de Berlim, o esboço da emigrente romena. Um prazer.

Silvares disse...

"Emigrante" romena, hoje estou a teclar um bocado ao lado.

roserouge disse...

É, o nosso Jorge é grande. Tens que ler o "Turista Ocidental". O meu está autografado e tudo, rói-te de inveja, ó Silvares!

Jorge Pinheiro disse...

A Amália e o Alexandre existem mesmo. A bola de Berlim também... Acabei de receber notícias da Ria. A Amália casou e está grávida e continua a vender bolas na praia, sem medo da ASAE!

Maria Augusta disse...

Lindo este conto, e tocante esta ansiedade para ter um breve minuto de felicidade antes de ser devorada. Muito bem escrito, o Jorge tem realmente talento.
Abraços para os dois.

sonia a. mascaro disse...

Jorge,
Mais um conto seu que prende a atenção de tão bem escrito e original!

A língua Portuguesa de Portugal tem termos que não conheço. Por exemplo: Bola de Berlim e Mocetão da ria.

Abraços.

Jorge Pinheiro disse...

Bola de Berlim é bolo muito popular e tradicional de venda na praia. Redondo, maior que um punho fechado, frito, com creme ou sem creme no interior e polvilhado de açúcar. É originário de Berlim.
Mocetão é um rapagão. Um jovem rapaz bem constituído.
Ria é um braço ou lago de água doce perto do mar, com abertura par esse mar e em que a água já é salgada e fauna e flora são muito especiais, por isso mesmo.
É um prazer explicar. Quando não souber, tb. pergunto.

Anônimo disse...

Muito interessante seu conto! Nunca me passou pela cabeça enxergar o mundo da "perspectiva de um alimento"...rs Gosto de ler sobre o "inusitado".
E o passeio da tal "bola", antes de de ser devorada, quem sabe não é o símbolo da nossa própria caminhada?
Deixo-lhe meu abraço e minha admiração!
Dora Vilela

Jorge Pinheiro disse...

Obrigado a todos e à nova leitora Dora, em especial.

Anônimo disse...

Obrigado JORGE, pelas explicações! Quando li a pergunta da Sonia, fiquei curioso pela RESPOSTA. Eu não tinha certeza, mas o texto me dizia que era isso mesmo, a BOLA DE BERLIM!

Obrigado também!

Forte abraço

Ví Leardi disse...

Gente...assim não vale...!O que faram os outros?...muito bom !!

Jorge Pinheiro disse...

Os outros também escrevem bem. Vem aí um novo do Silvares. Estou ansioso.

Tânia N. disse...

Excelente conto..parabéns mesmo!

sonia a. mascaro disse...

Obrigada pelas explicações, Jorge! Bjs.

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