O COMBOIO


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Sete e trinta da manhã. Joaquim monta a velha Zundap e arranca com estertor de escape aberto. Capacete de meia tijela. Badanas pendentes ao vento. Só à noite voltaria a Estiramantães, onde deixara mulher e cinco filhos menores. Até Pedras d’el Rei são quinze minutos pela 125.
Joaquim era maquinista do pequeno comboio que transportava veraneantes da aldeia turística à praia do Barril, na ilha de Tavira. Um quilómetro e meio pelo sapal dourado.
Em tempos aquele fora o transporte dos homens que iam à faina do atum. Faziam campanhas de meses seguidos no Arraial do Barril.
Há muito o atum abandonara estas águas. Restara uma floresta de âncoras enterradas no areal olhando, saudosas, o mar e um casario branco onde antes pernoitavam pescadores, agora poiso de turistas no hamburger de ocasião.
Joaquim entra na pequena locomotiva. Senta-se de lado no seu banquinho em frente das duas alavancas. Ao lado, um volante para inverter a marcha. Saia de cinco em cinco minutos. Demorava dez minutos no trajecto. Devagar, devagarinho. Depois voltava em marcha-atrás. No final do dia teria feito mais de duzentas viagens. Cerca de trezentos quilómetros.
Os primeiros turistas chegam pelas nove horas. Atravessam a estreita ponte levadiça que une as margens da ria e instalam-se nos bancos de madeira das quatro carruagens abertas. São casais jovens ainda ensonados que empurram carrinhos de bebés aproveitando o oblíquo sol da manhã.
Joaquim acciona a alavanca. O comboio parte devagar, devagarinho. Maré-cheia inundando o sapal como um grande lago, reflectindo o azul do céu na limpidez matinal.
A ilha está deserta. Um cheiro doce de ervas e sal perfuma o ar cálido que o vento se esquecera de soprar. Horizonte trespassado pelo piar perfurante das andorinhas do mar e dos maçaricos reais. Ao longe garças brancas procuram alimento nos buracos das bocas e dos caranguejos violinistas.
O comboio segue por uma recta rodeada por sapal dos dois lados. Depois uma ligeira curva e inicia-se a travessia de uma zona árida, um deserto salpicado por morros de estornos e rosmaninhos, entre moitas de tojo que transpiram um cheiro a caril.
Finalmente, já perto do areal, a floresta de acácias e o assobio permanente das casuarinas.

Havia dez anos que Joaquim fazia a mesma viagem. Fazia-a automaticamente. Alavanca para a frente, alavanca para trás. Esperar. Arrancar. Parar. Andar. Sair. Voltar. A partir da décima viagem o seu espírito já lá não está. Sonha acordado. Vive outra vida.
Joaquim não é mais condutor de turistas. É um indómito explorador de terras desconhecidas. Um “capitão do fim do mundo”.
Tudo à sua volta se transforma. Na maré-alta vê ilhas longínquas povoadas por estranhos pássaros multicolores gritando ao vento agreste. As águas são devassadas por gigantescos cefalópodes. Chocos descomunais vomitam rios de tinta escurecendo as brancas margens arenosas. Cobras de água acobertam-se no refúgio sibilante do lodo protector.
Na maré baixa vê pântanos insalubres cobertos de jacarés assassinos, serpenteando por entre artrópodes tentaculares e bivalves abissais. Cardumes de vorazes piranhas devorando carne putrefacta. Longueirões tubulares sugando a vida à sua volta.
Ao longe, lá longe no meio da ilha, a areia flutua na reverberação das dunas no horizonte sem fim. Tufos de palmeiras escondem oásis proféticos onde se mimetizam camaleões dinossáuricos com línguas pegajosas de peçonha incontinente.
O tempo passa. Agora os turistas são muitos. Entram, saem. Gritam entusiasmados. Mochilas. Pranchas. Guarda-sóis. Toalhas…
Joaquim já nada vê. Ele é o aventureiro. Descobre terras nunca alcançadas. Penetra horizontes inatingíveis. Luta com crocodilos imaginários. Esmaga insectos omnívoros. Vence areias movediças. Arrasa plantas carnívoras.
Os seus olhos vêm miragens escaldantes. Cidades reverberantes perdidas no calor. Florestas virgens no sapal refulgente. Crateras insondáveis no areal infinito.

Como sempre, ao meio-dia em ponto, ela aparece. Diáfana, sofisticada, exótica. Senta-se no banco da frente libertando pelas dunas o olhar azul. Cabelos ruivos divagando ao vento. Mãos de seda atiradas ao acaso sobre o colo convidativo.
Joaquim imagina-se a salvá-la dos miasmas pantanosos libertando-a da boca cavernosa de um jacaré. Vê-se a acariciar-lhe os cabelos fulvos. Sonha fugir com ela para uma miragem distante. Só ela existe. Todas as viagens, todos os sacrifícios, todas as aventuras valem a pena. As florestas desbravadas. Os perigos passados. Os horrores indizíveis. Tudo vale a pena… Ela tudo merece!
Ela sai no Barril e perde-se na multidão de veraneantes. Joaquim sabe que ela voltará. Todos voltavam. À noite a praia ficava sozinha entregue às gaivotas na luz espelhada do luar.
Joaquim passa a tarde a explorar os seus devaneios lutando com as horrendas criaturas que povoam a sua imaginação perturbada.
Os turistas sobem e descem alheios à luta heróica de Joaquim, no prosaico afã de sacudir as chinelas e limpar areia dos pés.
As horas passam. Às oito e trinta é o último comboio. Joaquim está numa ânsia. Ao longe os longos cabelos esvoaçantes e os olhos azuis transportando o oceano. Todos os dias, ela vinha à mesma hora. Vinha sozinha tal como fora. Sentava-se no mesmo lugar e olhava, sonhadora, o horizonte. Ao longe, o casario branco de Santa Luzia. Por trás, os cumes preguiçosos do Caldeirão.
Todos os dias, Joaquim tinha vontade de lhe falar. O ar misterioso e distante intimidava-o. Todos os dias, voltava a casa ansiando o dia seguinte.

Naquele dia, porém, ela não voltava da praia. Às oito e trinta, Joaquim atrasa a saída do comboio. Nada. Ela não vem. Ele desespera. Ela não pode ficar sozinha na praia. Que se passaria? Joaquim hesita.
Ela nunca tinha ido à praia. Nunca tinha visto o mar. O seu trabalho era apenas ir e vir. Transportar pessoas. Guiar o comboio!
Agora Joaquim tem de se decidir. Num repente, abandona a locomotiva e corre desesperadamente pela areia. Praia deserta. Lá ao fundo, encostados ao pau de um toldo, dois vultos. Ela beijava loucamente o nadador salvador que a cingia apertadamente pela cintura.
Joaquim estaca. Da raiva passa à resignação. Da revolta à resignação. Da ilusão à realidade.
Naquela noite regressou a casa taciturno. Os seus devaneios tinham acabado. Não mais teria princesas para salvar. Não mais haveria monstros para exterminar.
Nessa noite percebeu que mais vale viver iludido. A realidade não nos merece. A partir desse dia nunca mais quis ver o mar.
por JORGE FERREIRA PINHEIRO

8 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro Jorge, se o personagem JOAQUIM tivesse metade da sua imaginação, não teria sido motorneiro por tantos anos....

Parabéns!

Silvares disse...

Estou em crer que ele não chegou a reparar bem no mar. Com um beijo daquele tamanho no horizonte... o Joaquim continua sem saber como é o mar...

Só- Poesias e outros itens disse...

Uma leitura deliciosa.
Irreverente, surreal.

Mil pontos para o Jorge.
Ju Gioli

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Gostei do conto. Quantos de nós estamos vivendo como esse maquinista? Quantas vezes continuamos a nao ver o mar???

Parabéns pelo conto!

Maria Augusta disse...

Ele vive duas vidas, uma real e uma imaginária. Sera que um dia as pessoas assim vão partir em busca de seus sonhos?
Muito bom!
Abraços.

meus instantes e momentos disse...

Belissimo post.Belissimo blog. Dá gosto ficar por aqui.
Tenha um belo final de semana
Maurizio

Jorge Pinheiro disse...

Mais uma vez obrigado a todos pela leitura e palavras de agrado e ao Eduardo por ser o meu editor para o Brasil.

Anônimo disse...

Agradecemos a TODOS pela LEITURA e comentários.
Ficamos muito feliz de ter encontrado primeiro uma formula interessante de postar LITERATURA, e segundo de poder contar com ESCRITORES como os que nos sedem seus textos para este blog! Esperemos que mais talentos surjam e partricipem!

Abçs a TODOS

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