SETEMBRO


Conte o seu

185 moscas... Tudo à mão... 22 em pleno voo. Record absoluto!
Três da tarde. Quarenta graus à sombra. Fechado na frescura do feldespato. Cheiro ácido a porco vindo lá dos “fundos”. As primas já cá deviam estar para brincar aos médicos entre presuntos obscuros na cave brigantina.
Na casa ao lado, o meu tio-avô Abílio, mantinha uma mercearia com rentável estacionamento para burros em trânsito com pessoal de Gimonde, Carrezeda e Sacóias. Belo negócio... Para mim, apenas mais moscas!
Logo à frente, os bombeiros não paravam de apitar. Fogos devastavam as serras de Montesinho, Bornes e Nogueira. Para mim, apenas barulheira!
Às 17h tinha lição de acordeão, nas “freirinhas”. O método era 1-2-3-4-5-6-7-8-9-10. Cada número sua nota. Cada dedo seu número. Nunca cheguei a perceber quem era mi... muito menos onde ficava lá!
A rua era “De Trás” por contraposição à rua “Direita”... Exercício regional de duvidosa expressão democrática. Ambas acabam bifurcadas na Praça da Sé, na sombra tutelar da monumental torre de menagem.
Casa de três pisos e loja, paredes meias com a Câmara Municipal, a escassos cem metros do museu “Abade de Baçal”. Gravada no granito frontispício, a data abissal de 1783.
O meu avô Domingos, mais conhecido por “capitão Sagres”, cidadão honorário de Zamora, tinha espanholas que “matava” na lerpa raianana entre Sanabria e Puebla, montado no jeep da GNR que lhe conferia incontestável imunidade diplomática.
Dia sim dia não, vinha jantar com um brilhozinho nos olhos, sempre pontualmente às sete. A minha avó Olinda disfarçava e o pessoal tentava não ter conversas polémicas, engolindo rapidamente a sopa de feijão verde e alheira com grelo cozido, sem comentários de maior. Política, nunca!
Depois do jantar a rua estalava de calor. Volta esforçada até ao “Café Leão”... 200 metros... Saturação de tabaco... Barulheira “Cimbalino” no expresso de bicas suadas... “Que grande que ele está”... “Cada vez mais igual ao pai”... “Então sempre queres ser médico quando fores grande?”. Grande já eu era, tinha 13 anos e, francamente, não tinha a mínima vontade de ser qualquer coisa. Queria era sair dali... E as primas nunca mais vinham, porra!
A minha bisavó Marta, com respeitáveis 96 anos, vestia-se a preceito, enfrentando o preto e branco da televisão Grunding com sorriso de cerimónia contida. Respondia à locutora de serviço, na certeza que ela estava dentro da caixa iónica e que falava exclusivamente para ela. Os primos riam e meu tio Amílcar tentava, inutilmente, explicar-lhe a noção de teledifusão.
As moscas atacavam manhã cedinho, na manivela escorregadia da bomba do poço. 150 voltas enchendo a cuba de granito para a rega da tarde, aumentanto exponencialmente os enchumaços ósseos dos meus ombros magritos.
Depois vinha a apanha dos figos de capa-rota em escadas gigantes de ferrugem, fugindo a abelhas gulosas, vespas assassinas e aranhas de cruz em teias megalómanas. Trabalho escravo supervisionado pelo avô que puxava o ancinho entre alfaces francesas e morangos serôdios.
Às onze estava pronto para o primeiro folar do dia, enquanto tentava inutilmente uma cagada na sanita de emergência na varanda em sobrado com janela panorâmica para o quintal.
Lá em baixo, gatos malhados tentavam passar despercebidos na penumbra da couve galega. Nada que a minha “Diana 23” não detectasse... e bumba, mais um chumbinho nas nalgas. Sim, que entre galinhas, porcos e patos, há muita rataria. Não queríamos gatos acomodados. Havia que espevitá-los!
O almoço aproximava-se rapidamente sob a forma de uma nojenta canja de perdiz, carregada de miúdos, seguida de rojões fritos em banha e batata entalada. Para rematar, o habitual queijo, com banana e marmelada. Em dias especiais havia pisperno, com nabo e cascas. Sobremesa, o fumegante chouriço de mel cozido com apetitoso aspecto a cócó fresco e sabor a goiabada de porco... Coisas leves para aguentar a modorra da tarde.
Aos domingos, piquenique no viveiro das trutas na subida para Montesinho, de quem vai por França, ou umas revigorantes braçadas salobras no gelado Sabor, entre barbos ingénuos que mordiscavam os pés e cobras de àgua que nos lambiam sensualmente o ventre. Tudo sempre sustentado por uma poderosa bateria de salpicões, chouriças e o inevitável folar. O jantar era só às sete!
Setembro. Todos os anos era raptado em plenas férias grandes. 3456 curvas mais tarde, entalado no moderno “Sinca Aronde”, entre cestas de reforço gastronómico e a omnipresente “governanta” Alice; pernoita obrigatória no “Grande Hotel do Luso”; o indispensável bacalhau cru em Torre de Moncorvo, para evitar o derradeiro vómito... Bragança à vista. Nove meses de inverno, três de inferno. Para mim era sempre inferno!
Setembro. Que estava eu a fazer naquela pasmaceira? Subtraído à moderna Nova Oeiras. Arrebatado às minhas “voltas na Alameda”. Precocemente sacado às namoradinhas de praia. Retirado do indomável vento noroeste. Distante da Marginal. Violado no final das férias grandes. Contrariado até ao fundo do meu ser?!
40 Setembros passaram. Muitas mais moscas morreram... familiares também. Já não há casa de granito. As primas já não querem brincar aos médicos. O “Café Leão” é agência bancária. As curvas de Foz Côa esqueceram a vertigem nos acidentes do IP4. O castelo ergue-se agora entre desvairada especulação imobiliária. Os bombeiros continuam a apitar. As serras sempre a arder... As meninas a aprender.
Eu sobrevivo noutra pasmaceira entre o “grande salpicão” e a “chouriça fatal” esperando a hora do “divino folar” que, num Setembro qualquer, hei-de inevitavelmente saborear.
JORGE FERREIRA PINHEIRO
Abril/2005

10 comentários:

Só- Poesias e outros itens disse...

Jorge, uma beleza de conto.
A memória do inevitável das mudanças.
Um ser que se questiona na velocidade do tempo.

bjs.

Ju Gioli

Anônimo disse...

Belo texto, indicado pelo Eduardo, do Varal de Idéias. Também uma ótima idéia ter um blog que abrigue textos variados.

Anônimo disse...

A nem sempre tênue linha crescente entre a infância e a idade adulta, com as lembranças que nos restaram, maculadas pelo sútil aroma das nossas próprias lembranças, a transitarem entre a irrefreada saudade e a inevitável resignação. Este seu conto é um saboroso passeio pelas reminiscências.

Silvares disse...

Estou mesmo a ver o lugar e o ambiente. O Portugal profundo como (também) o conheci. E (também) agora desconheço ou, pelo menos, dificilmente reconheço. Os bancos e as companhias de seguros estão a comer as tascas todas à memória.

Anônimo disse...

Uma delícia no ritmo e concepção, ainda que MUITAS palavras e construções sejam absolutamente incompreensíveis ao NOSSO Português. Só dá mais graça ao conto!

Jorge Pinheiro disse...

Posso tirar dúvidas...

Ruvasa disse...

Viva, Jorge!

Como é que se diz, como é?

Ah, sim!

"Tiro-le a nha boina, porra!"

Abraço

Ruben

Jorge Pinheiro disse...

Agradeço a todos a leitura, em especial aos meus amigos brasileiros que não perceberam, seguramente, muita coisa. Os termos regionalistas usados até para portugueses não são fáceis. Mas todos perceberam o sentido, como bem transparece do comentário do Mário.

Anônimo disse...

Jorge,

quanto à sua sugestão de tirar dúvidas, não vale a pena. Tiraria duvidas e a graça do conto! A graça esta nas dúvidas!

Forte abraço

Ví Leardi disse...

Jorge,só agora venho...mas que bom que vim....Que beleza de conto e que escritas magníficas as tuas...Muitos dos termos posso não conhecer ,mas o clima e a memória de dias da minha infância e adolescência também se fazem tão presentes....que dom poder colocar em palavras tão belas o que se viveu !

.

.
conte o seu : qcucaup@gmail.com