Incitar para Acordar


Conte o seu

por Alice Salles

Caminhava tranqüilamente mas sem saber que era espionada. Sem saber que por alguma razão minimamente sombria estava mal-preparada para qualquer rota de fuga que quisesse escolher. Seria eternamente grata se tudo fosse mentira, se tudo fosse uma grande ilusão. Mas não era. De repente esse grande monstro cheio de dentes, de sorrisos e com cara de bom moço havia tomado minha consciência. Sim estava maravilhada pela loucura de uma talvez arriscada e sã liberdade, que não havia. Vi de tudo. Pessoas sorridentes, cortando a grama de seus jardins, crianças que eram entupidas com remédios que prometiam um crescimento mais saudável, cercas branquinhas, casas victorianas em esplêndidos subúrbios, mães fingindo ter vidas sexuais plenamente agradáveis e sensatas enquanto seus belos e tão felizes maridos traçavam as cabritas em seus escritórios. Cabritas sim, porque antes eram animais inocentes da fazendo hoje são domesticadas e servem bem para o passatempo dos patrões.Vi-me cercada por pequenos duendes com chapéus pontudos e que sempre se matavam para mostrarem o caminho. E me perguntava constantemente se queria ver onde dava mas abri bem os meus olhos para poder contar agora mais tarde o que vi. Enxerguei ao longe meus amigos. Pessoas lindas que como eu estavam dormindo. Sim, plantados no caminho. Não era como Matrix. Não era um mundo de robôs que inverteram os papéis, não. Vi plantações de bebês, crianças, jovens, velhos e até de pessoas falecidas que simplesmente pairavam em um limbo cor-de-rosa. E foi quando sabia que não podia deixar isso acontecer. Do outro lado outros que não foram tão afortunados por poderem dormir eram mortos, sugados, triturados e transformados em mártires, em histórias para nos ensinar. Ensinar? Ensinar a cada um que ouse perguntar que o mundo é assim mesmo: injusto.E então saí daquele lugar. Saí mas fiquei paralisada. Como era grotesco aquele mundo! Não era possível que aquela esfera azul que circulava em torno do sol, da luz agora estivesse tomado por essa imundice, quem fez isso?Por um certo tempo fiquei calada. As lágrimas que corriam dos meus olhos caíam sobre a lama suja e fedorenta de onde eu estava e se voltava contra mim, criando mais lama para impedir meus passos. Chega! Não posso mais chorar, pensei.Mas o que faço agora? E se vejo tantas pessoas boas ali, dormindo, porque não vou acorda-las? Será que posso? "Venha!" Ouvi uma voz gritar. "Venha, me ajude! Fui eu quem te acordou!" Já não sabia mais de onde vinha aquela voz e então alguém me abraçou, tão forte que me senti por alguns segundos como era bom não estar sozinha. "Você viu o que fizeram? O que nós fizemos?". Estava tão tonta e a pessoa que me indagava também estava. Ele me contou que estava ali por dias, talvez meses tentando acordar alguém. Havia tentado de tudo! Músicas que ele conhecia de protesto, músicas dele, histórias, gritaria, beijos, empurrões... mas ninguém dava bola pra ele até que eu acordei e caí! Por isso ele tentou me encontrar, procurando entre a lama e toda aquela imundice."Não é porque a sujeira tomou conta de nossas vidas, é porque optamos sempre pelo nosso conforto. Deixamos ela entrar pelos poros, pelas frestas e deixamos rastros para ela nos seguir. Não abrimos os olhos. Estamos dormindo! E agora você sabe disso." Realmente me senti uma idiota."Olhe, eles não ficam no nosso caminho. Somos muitos, somos fortes e podemos tirar essa auto-infligida poluição do nosso mundo mas ninguém acorda. Todos os sinais chegam até nós. As guerras, as mortes injustas, as tristezas em casa, com a família, os suicídios, os amigos infelizes, as nossas mães apáticas, nossos pais predadores, nosso caminho cheio de pedras, o câncer, as doenças da alma, os perdões que deixamos de conceder e portanto de receber, enfim! Está tudo escrito, cuspido, escarrado por todos os lados e nada acontece."Será que precisamos ir ao fundo, ao fim de tudo e por alguma razão mais forte do que nós mesmos temos que voltar literalmente das cinzas para buscar a humanidade? Será que vamos deixar esse monstro que nasceu dos restos das nossas peles, nosso cabelo, da saliva das nossas bocas se reproduzir? Vamos? Eu não quero deixar. Não posso, agora que sei da verdade, que vi de onde vim e porque estou aqui. Não dá mais.Não quero criar pânico ou nenhum outro sentimento de plena raiva, não. Quero trazer à tona uma única e simples pergunta que deve ecoar em todas as cabeças pensantes dessa geração de retardados, apolíticos e reles impotentes: Que porra estamos fazendo, deixando a vida nos levar?

***Alice Salles

7 comentários:

João Menéres disse...

ALOICE

Como sabes, não sou crítico literário.
Já tenho dito que és pioneira num estilo de escrita.
Rápido e cortante.
Por vezes, o ritmo é alucinante.
Outras, obrigas-me a ler e a reler.
Agora, com este realista texto sobre uma Terra poluída com tanta nojeira, dás mais um passo em frente no teu percurso.
Pena já cá não estar quando o teu nome estiver nos tops dos autores mais lidos e desejados...
Um beijo muito grande para ti.

Anônimo disse...

João,

acho que você viverá, sim, para ver o nome da Alice nessas alturas! Vai demorar menos do que pensa! Continue vivo e verá! rsrsrs!

João Menéres disse...

Nas profundezas ou nas alturas, alguém me levará a boa nova, sim.
Mas... só depois da Alice escrever o seu primeiro livro!
Para isso, ela tem que ASSENTAR .

Alice Salles disse...

João! Edu! TO COM VERGONHA! hahahaahahahahah
Ainda bem que não da pra se ver as bochechas coradas no blog :D

Jorge Pinheiro disse...

Até que enfim que o conto não é meu. Já estava a enjoar!
Alice, bem escrito, no seu estilo repentista e certeiro. Não deixa margens para dúvidas. Todos sabemos ao que vem. Mantém uma utopia saudável e necessária. Cuidado não resvale e transforme a utopia em morte. É que a vida anda mesmo a "nos levar"! Parabéns e continue por favor.

**** disse...

olá... gostei deste blog

espero que visitem o meu:
semsugestaodenomes.blogspot.com

Camilla Ribeiro. disse...

Alice, parabéns pelo texto. Mas, principalmente pelas indagações. Tudo o que vivemos neste século tão próximo de mazelas incesantes, eu também vejo, que passam despercebidas pela maioria das pessoas. Razão? Não sei! Não vejo muitas razões de tamanha hipocrisia inventada e que nos acomoda. Continue sempre escrevendo e lutando pela vida da literatura. Quem sabe um dia essa poética não vem nos salvar...

Beijos e Abraços,
Camilla Ribeiro.

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conte o seu : qcucaup@gmail.com