PAVANA DA VELHA SENHORA

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Agora tudo nos lugares e ninguém para desarrumar. Da porta de entrada até as poltronas, o piso lustroso de desenhos bonitos que um dia temera tanto ver arranhado. Os cinzeiros no lugar certo, os pés da mesinha bem alinhados com o sofá. Os badulaques do lustre desenhando triângulos no teto em nítidas linhas de luz. As cortinas ameaçam uma solenidade despropositada. O espelho alto traz para dentro a vista da janela – a lagoa, o verde, o céu cruzado de improvisos.Examinou o rosto com cuidado: as imagens do espelho guardam sempre um traço de falsidade, mas a pele cansada estava nítida. Uma senhora extraordinariamente respeitável, no entanto; bolsas debaixo dos olhos, sorriso impassível. Um certo ar de enigma lhe cairia bem, mas já não havia motivo para isso. Em lento desconsolo, os ombros descaídos, notou entre o corpo que envergava e a imagem uma nota dissonante, e foi como se alguém a olhasse no fundo dos olhos em um momento crítico.Pratas e cristais a sua volta se tornaram presenças agravantes, como se lhe virassem a cara. Não há de ser difícil conseguir a paz, tentou convencer-se a caminho da janela, e teve a sensação de pisar sobre pequenas flores murchas. A tarde ia escurecendo ligeira, numa dança de luzes e trevas, e uns sons abafados chegavam a seus ouvidos.Lembrou de tanta coisa de repente – as lutas sem fim, as crianças, os adultos em que haviam se transformado, uma certa indiferença nos olhos deles – agora com certeza não mais os mesmos. Onde estariam nessa noite de sábado?Pouco importaria a quem quer que fosse se a casa estava ou não arrumada. Nem mesmo a ela. Mas era preciso tentar.Entreabriu a vidraça. O ar novo no rosto e a súbita fisgada romperam o equilíbrio precário, construído como um mosaico de peças trazidas de fora, que não respondiam a nenhum de seus apelos. Cravou os olhos no lado mais escuro do céu e se aprumou diante da noite. Um vento indiscreto e atrevido ameaçava seu penteado.Voltou para dentro da sala. Do sofá olhou devagar para tudo, lembrando o tempo em que a sala não parava arrumada, o espelho respingado, marcado de dedos, até uma boca de batom tinha encontrado. A indignação daquele dia era uma lembrança alegre. O tapete, a franja sempre embaraçada, a ponta virada. A luminária de opalina em mil cacos. A cortina comprida com os fios da barra repuxados pelas unhas da gata Clotilde, os olhos fosforescentes no canto escuro junto ao sofá. As paredes, ora acetinadas em creme, naquele dia encardidas, manchadas de mostarda do sanduíche de Marquinhos, dedos sujos de tinta de carimbo do jogo de Maria Isabel.Tinha afinal alcançado a perfeição sonhada durante todos aqueles anos. Mas tinha sido há tanto tempo... As lágrimas lhe desenharam linhas sinuosas e negras rosto abaixo.
ADELAIDE AMORIM

4 comentários:

dade amorim disse...

Querido Eduardo, é uma honra estar aqui no Quem conta um conto, no meio de gente amiga e criativa!
Beijos a você em especial e também para esse seleto grupo.

Anônimo disse...

Amiga Adelaide,

este espaço esta ABERTO a todos os bons textos, basta nos enviar!
Bjs

Giovani Iemini disse...

bonito blog.
[]s

Anônimo disse...

Giovani,

e ficará melhor se nos mandar um conto!

Forte abraço

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